domingo, março 18, 2007

cão da morte


No calor da febre que me alarga toda a fronte
Sinto o gume frio da navalha até ao osso
Sinto o cão da morte a bafejar no meu pescoço

E a luz do sol a fraquejar no horizonte

Já desfila trémulo o cortejo do passado

Que me deixa quedo, surdo e mudo de pesar
Vejo o meu desgosto na beleza do teu rosto
Sinto o teu desprezo como um dardo envenenado

Morro, morro, no altar de ti!

Sopra forte o vento na fogueira que arde em mim
Sinto a selva agreste nos batuques do meu peito

No cruel caminho que me lança o desespero

Sinto o gelo quente do inferno do meu fim
No calor da febre que me alarga toda a fronte
Sinto o gume frio da navalha até ao osso
Sinto o cão da morte a bafejar no meu pescoço
E a luz do sol a fraquejar no horizonte

Morro, Morro no altar de ti!


Adolfo Luxúria Canibal in Primavera de Destroços

terça-feira, março 13, 2007

opiário

É antes do ópio que a minh'alma é doente
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que me consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
Já não encontro mola para adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onda o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta ás vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver presiste.

Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a vida faz-me tédio.
Fumo. Canso. Ah, uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Para que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?

Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram a minha sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmola á porta da Alegria.

Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.

Não posso estar em parte alguma. A minha
Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca...e o resto ele adivinha.

Um dia faço escândalo cá a bordo,
Só para dar de falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que ás vezes me debordo.

Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que me entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talênto eu mal o sinta!
O facto é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.

Os ingleses são feitos pra existir.
Não há gente como esta pra estar feita
Com a Tranquilidade. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.

Pertenço a um género de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem laio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!

Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.
Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali
Pra sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.

O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a...

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah, que bom era ir daqui de caída
Prà cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas -
E basta de comédias na minh'alma!


Álvaro de Campos in Orpheu, nº1, 1915

desassossegos...

é no sossego da vida que se reflete sobre os tormentos da mesma...assim se abrem brechas na mente, abrindo espaços para os desassossegos...

como tal, em periodos de reflexão, aqui se gravarão alguns...
uns famosos...outros talvez não...