domingo, novembro 25, 2007

ave-marias


Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.


O céu parece-me baixo e de neblina,

O gás extravasado enoja-me, perturba;

E os edifícios, com as chaminés, e a turba

Toldam-se duma cor monótona e londrina.


Batem os carros de aluguer, ao fundo,

Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!

Ocorrem-me em revista, exposições, paises:

Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!


Semelham-se a gaiolas, com viveiros,

As edificações somente emadeiradas:

Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.


Voltam os calafates, aos magotes,

De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;

Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos canais a que se atracam os botes.


E evoco, então, as crónicas navais:

Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas náus que eu não verei jamais!


E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;

E em terra um tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.


Num trem de praça arengam dois dentistas;

Um trôpego arlequim braceja numas andas;

Os querubins do lar flutuam nas varandas;

Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;

Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;

E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.


Vêm sacudindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;

E algumas, à cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas!


Descalças! nas descargas do carvão,

Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;

E apinham-se num bairro onde miam gatas,

E o peixe podre gera focos de infecção!


Cesário Verde in O Sentimento dum Ocidental